Dia#26 | Caminho Francês

Dia#26
Distância: 24.5km
Tempo de caminhada: 9 horas
Clima: Sol
Temperatura: Mín: 12° / Máx: 24
Saída: Barbadelo
Chegada: Gonzar
Data: 02/10/2017
Palavra do Dia: Intuição

Acordei. Me arrumei. Aguardei alguns amigos na frente do albergue (Raphael, Victor e Borisz). Combinamos de começar a caminhar juntos hoje. Ainda estava escuro quando saímos. Era uma área rural. O cheiro de estrume nos acompanhou por alguns quilômetros. A luz da lanterna do peregrino atrás de mim, fazia uma grande sombra minha sobre as árvores na minha frente. Me senti como um “espírito” gigante andando sobre a natureza. Guardiã da floresta. Deu 7:30 AM. Ouvi galos cantando. Eles são pontuais. Ao longe pude ouvir o cantar de um pássaro parecido com o da arara. Alguns segundos depois, ouvi o som alto de um boi. Bem distante. Agonizando. Parecia triste. Sensação interessante. “Ver” com os ouvidos. Sinestesia. Os sentidos ficam todos conectados por aqui. A audição fica tão perspicaz que eu conseguia perceber de que direção vinha cada som e de qual distância. Interessante. Ouvi um novo barulho. Algo caiu do meu lado. Me assustei. Olhei. Era uma maçã. Vermelha. Pareceu um “bom dia”. Sorri. Em seguida, a natureza silenciou. Ouvia apenas passos. Éramos quatro peregrinos. Olhei para trás. Uma estrela brilhava forte no céu. Era a única. Linda. Singular. O céu começou a clarear anunciando que o dia estava chegando. O crepúsculo tem uma coloração única a cada dia. Nunca se repete. Também podemos fazer tudo diferente todos dias e fazer toda a diferença. Estava pensando nisso quando vi uma vela acesa no chão e alguma coisa em volta. Era uma camisa, uma tigela e um cartaz escrito: “Walking the camino with no money. Can you donate, please? Money, food or water.” (Andando o Caminho sem dinheiro. Você pode doar, por favor? Dinheiro, comida ou água”). Um metro atrás, havia uma barraca fechada. Provavelmente ele estava dormindo alí dentro. Seu nome era “Russell Kenny”. Meu amigo o achou maluco. Pra mim, isso é ser corajoso. Viver com fé. Confiar. Acreditar que a vida vai te providenciar tudo que você precisar. Admiro pessoas assim. Doei todas as moedas que tinha no bolso. Coloquei na pequena tigela de metal. Meus amigos fizeram doações também. Seguimos. Veio o nascer do sol. Muitos pássaros cantavam. Parecia uma orquestra sinfônica. Parei no vilarejo seguinte para comer. Encontrei um amigo alemão que já não via há quase uma semana. A última vez que o vi, ele estava muito gripado e disse que talvez não continuasse. Fiquei feliz em ver que ainda estava por aqui. Enquanto conversava com ele, vi uma “Estrela de David” no chão. Era de papel. Colorida com lápis de cor. Não entendi o que aquilo estava fazendo alí. Lembrei do meu ex-namorado israelense e do tempo que passei em Israel. Amo aquele lugar. Peguei pra mim. Guardei-a entre a capa e o celular. Levei comigo. Eu estava com fome. Pedi um croissant simples. Usei a manteiga que sobrou do dia anterior. Estava uma delícia. Segui. Eu e o Brasileiro (Raphael) conversamos por um bom tempo sobre os valores e a cultura do nosso país. Não me identifico muito. Me sinto um peixe fora d’água. Tenho muita vontade de morar fora. Seguimos. Vi um cogumelo gigante. seu caule era grosso e abaixo de sua superfície parecia um doce mil-folhas. Fragilidade e beleza. Ao seu lado, vi simpáticas flores amarelas. Simples. Singelas. Alegres. Pareciam estar dando “bom dia”. Um pouco mais adiante, avistei uma placa que apontava para duas direções opostas. Surgiu dúvida. Uma seta amarela apontava para a esquerda e uma seta em azul desenhada a mão apontava para a direita dizendo “vero camino”. O que fazer? Seguir os instintos. Sempre. Segui para esquerda. Era a direção certa. Agradeci. Passei por muitas macieiras. Avistei várias caídas no chão. Peguei duas. Tinha cheiro de fruta fresca. Cheiro de torta caseira saindo do forno. American Pie. Continuei. Um pouco mais a frente vi uma lixeira com um dizer: “o que faes, o que traes, ten moito valor”. Momento de reflexão. Metafórico. O que fazemos pode realmente fazer a diferença e o que trazemos dentro de nós tem muito valor. Foi assim que interpretei. Um pouco depois, vi um grande mesa na porta de uma casa cheia de comida. Muita variedade. Tinha água, café, leite e chá também. Dei minha contribuição e comi à vontade. Tinha queijo com goiabada. Me lembrei do Brasil. Minha mãe é de Minas Gerais. Doce típico. Comi um pedaço. Tinha o gosto da minha infância. Me deleitei com mais algumas coisas gostosas e segui em frente. Vi uma frase dizendo: “Jesus nunca cansa de perdoar”. Achei aquilo marcante. Se ele perdoa sempre. Quem somos nós para não perdoar alguém? Devemos perdoar sempre também. Lição aprendida. Alguns quilômetros depois, avistei uma cruz. Senti fortemente em meu coração, a vontade de deixar alí o que a Americana (Alex) havia me dado alguns dias atrás. Era uma espécie de boneco feito de pano. Ela disse que deram pra ela quando ela estava sofrendo pela perda de um amor. E toda vez que sentia saudade ou algum sentimento ruim, pegava o boneco na mão e deixava aqueles sentimentos alí. Quando ela tivesse superado esse amor e essa dor, ela deveria se desfazer dele. Foi então, que no meio do Caminho, ela me contou essa história e me deu. Disse que sentia que eu precisava dele e ela já não precisava mais. Na Cruz de Ferro, eu já havia deixado esse antigo amor para trás e agora, era a confirmação de que ele realmente ficaria lá. Eu queria me sentir livre para amar de novo. Coloquei o boneco encostado no braço da cruz e fui embora. Um pouco a frente, parei em um bar para ir no banheiro. Um espanhol me perguntou se eu era daqui. Disse que era brasileira. Me perguntou se eu tinha paracetamol porque ele estava com dor. Na mesma hora abri minha mochila. Tirei tudo de dentro dela e peguei a cartela de remédio lá no fundo. Cortei dois compridos e dei pra ele. Me agradeceu. Pediu pra tirar uma foto comigo para guardar de recordação. Me ofereceu uma cerveja como gratidão. Agradeci. Mas disse que não precisava. Estava com mais dois amigos me esperando do lado de fora. Segui com eles até o próximo vilarejo. Encontramos uma placa avisando que estávamos à 100km de Santiago. Falta pouco. Sensação estranha. Ao mesmo tempo que quero chegar, não quero que essa magia acabe. Passei por um lugar cheio de conchas (vieiras) pintadas a mão nas mais variadas cores possíveis e com bonitas mensagens de reflexão. Parei para ler algumas e segui. Alguns quilômetros depois, passei por uma ponte que cortava um rio. Era época de seca. O nível da água estava bem abaixo do normal. Mesmo assim era bonito de contemplar. No final da ponte, tinha uma enorme escada. Era passagem obrigatória. Não sabia onde me levaria. Mas sabia que tinha que subir. Parei para uma foto. Lá em cima, descobri que ela levava para a entrada da cidade de “Portomarín”. Achei interessante. Bateu fome. Andei pela rua principal procurando algum lugar para comer. Na frente de uma construção medieval, encontrei um mercado. Comprei pão, queijo e um biscoito doce. Fiz dois sanduíches. Comi. Segui em frente. Avistei uma cruz cheia de objetos, bandeiras, fotos, cartas. Pensei em deixar a foto que levei da minha tia alí com um bilhete no verso. Queria que ela a encontrasse quando estivesse realizando o sonho de fazer o Caminho. Mas eu não tinha um nada de plástico para envolver a foto de forma que durasse por mais tempo. Então decidi que levaria ela comigo até o final. Eu não poderia deixá-la tão perto de Santiago. Ela precisava chegar comigo. Foi o prometido. Segui em frente. O sol estava a pino. O dia estava muito quente. Bateu cansaço. Bebi água. Decidi ouvi música para motivar. Logo depois passei por uma área de queimada. O calor do sol havia castigado aquelas árvores. Estavam secas. Troncos negros. Parecia carvão. Ainda era possível ver algumas folhas laranjas no topo de algumas delas. Cor de fogo. Um cheiro especial acompanhou essa paisagem. Um cheiro doce. Não sei da onde vinha. Sei que era delicioso. De repente, a vegetação ficou verde e amarela. Árvores cheias de folhas fazendo sombras. Parecia um pequeno bosque. Deu uma aliviada no calor. Aproveitei para acelerar o passo. Já havia andado por duas horas no sol. Acabou a água. Senti sede. Felizmente, um quilômetro depois cheguei no meu destino: “Gonzar”. O dia foi cansativo. Pareceu mais longo do que o normal. Achei o albergue municipal. Ainda tinha vaga. Senti alívio. Fiz check-in. Peguei minha cama. Tomei um banho. Hoje a água estava quente. Agradeci. Lavei minha roupa. Coloquei pra secar. O sol estava forte. Bom pra secar tudo mais rápido. Procurei algum lugar para comer. Estava faminta. Encontrei um bar perto do albergue. A cozinha estava fechada. Era hora da “siesta”. Só abriria depois das 18:30. Eu ainda continuo achando isso engraçado. Resolvi comer um pão com queijo que eu tinha na mochila enquanto conversava com alguns amigos (Raphael, Borisz e Gabi). Deu 17:00. A atendente resolveu abrir a cozinha. Perguntou se queríamos algo. Eu já tinha matado minha fome. Meus amigos pediram comida. Resolvemos dar uma volta depois pra fazer a digestão. Em cinco minutos já tínhamos rodado todo o vilarejo. Era bem pequeno. Vi alguns porcos brincando no chiqueiro. Pareciam felizes. Eles fazem um barulho engraçado. O cheiro não era bom, mas eles eram simpáticos. Peguei minhas roupas no varal. Guardei. Estava quase na hora do pôr do sol. Decidi procurar um canto sossegado para admirá-lo. Sentei perto de uns tratores e apreciei mais uma vez esse espetáculo da natureza. Escureceu. Esfriou. Decidi voltar para o albergue. Fui pro quarto. Deitei. Agradeci. Dormi.

Lição do Dia: Siga sempre sua intuição. A resposta está sempre dentro de você!

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