Dia#24 | Caminho Francês

Dia#24
Distância: 21,1km
Tempo de caminhada: 6 horas
Clima: Névoa / Sol
Temperatura: Mín: 12° / Máx: 19°
Saída: O Cebreiro
Chegada: Triacastela
Data: 30/09/2017
Palavra do Dia: Sentidos Aguçados

Acordei. Me arrumei tentando não fazer muito barulho. O quarto era MUITO grande. Acho que o maior até agora. MUITAS camas. MUITA gente dividindo o espaço. É preciso respeitar os que ainda estão dormindo. Tinham muitos amigos no mesmo albergue que eu. Nos encontramos do lado de fora. Começamos a caminhar. Formamos um grupo grande. Eram 6:30. Ainda estava escuro e frio. Usamos lanterna. Minha amiga Russa (Tânia) caminhou ao meu lado e por alguns quilômetros me contou sua história de amor. Longa história. Adorei ouvir. Tentarei resumir. Ela foi para os EUA com o namorado Russo aos 20 anos. Estavam em Boston. Aproveitaram para visitar uma antiga professora de inglês dele da época da escola. A professora havia dado seu telefone pros alunos quando ainda eram crianças e falou que se algum dia, alguém fosse à Boston, adoraria que eles entrassem em contato com ela. Anos depois, ele fez isso. A professora já havia se casado e tinha três filhos. Um deles estava precisando de uma babá e ofereceu trabalho para Tânia. Ela aceitou. Voltou para a Rússia. Resolveu questões burocráticas e em 6 meses estava lá novamente. Seu namorado teve o visto negado e acabaram terminando o relacionamento. O irmão mais velho do seu patrão começou a visitar os sobrinhos com mais frequência e depois de dois meses disse que queria namorar com ela. Ligou para o irmão e avisou que a partir daquele momento, a babá dele era sua namorada. O irmão disse que se eles namorassem, ele teria que dispensar a babá e ela ficaria sem trabalho. Foi o que ele fez. Sue novo namorado a convidou pra morarem juntos em seu apartamento e arrumou um novo emprego pra ela. Dez meses depois se casaram. Tiveram 3 filhos. Foram muito felizes. O casamento durou 18 anos. No último ano se divorciaram. Ela disse que ele foi um marido maravilhoso. Excelente pai. Continuam super amigos e se amam como pessoa. Mas já não havia mais um “casamento” entre eles. Exemplo de como um relacionamento conjugal pode acabar e o amor pelo outro como pessoa pode continuar. Bonito isso. Maduro. Exemplar. Resumindo: ela casou com o filho da professora de inglês de infância do ex namorado. Daria um belo filme de comédia romântica. Paramos em um vilarejo. Metade do grupo ficou para comer algo e tomar um café quente. O restante seguiu caminhada. Um enorme cachorro estava deitado na porta do estabelecimento. Parecia mais um cão de guarda. Me aproximei e ele deitou de barriga pra cima. Começou a fazer charme e pedir carinho. Coisa mais linda. Me abaixei e brinquei com ele. Tenho uma conexão forte com os animais. Amor incondicional. Fiz festinha nele. Dei uma pastilha para aliviar a dor de garganta de Tânia porque ela ainda estava com muita tosse e depois segui meu caminho com outro amigo (Borisz, Húngaro). Caminhamos alguns quilômetros e paramos no vilarejo seguinte. Comemos alguma coisa e seguimos novamente. Névoa. Muita névoa. Estava literalmente andando nas nuvens. Pude sentir gotas de água na minha pele. Não era chuva vindo do céu. Eram das nuvens por onde eu passava. Elas estavam carregadas. Nunca havia sentido isso antes. O sereno trouxe umidade. O cheiro de terra molhada me acompanhou por um tempo. Amo esse cheiro da natureza. É um dos meus favoritos. Havia muitas nuvens. Parecia estar olhando pela janela de um avião. Não conseguia enxergar muita coisa à minha frente. O mistério do que estava por vir tomou conta da caminhada. Só era possível enxergar alguns metros à frente. Era preciso caminhar passo a passo para encontrar a direção. Do lado direito havia um morro. Do lado esquerdo, um penhasco. Não dava pra ver mais nada além disso. A visão periférica ficou menor. Não era possível enxergar o horizonte. Parecia que eu estava usando um óculos embaçado. Às vezes, a vida fica assim mesmo. Sem muita cor. Tudo parece meio turvo. Ficamos sem saber que direção tomar, mas é preciso continuar caminhando para ver se o caminho clareia mais pra frente. A esperança de que melhore, nos faz seguir adiante. Momento de reflexão. Olhei pra baixo. As folhas amarelas de outono guiavam meus passos. Segui em frente. Vi dois cachorros brincando felizes. Sorri. Passei por uma área rural. O cheiro de estrume me acompanhou por alguns quilômetros. Precisei de um certo cuidado ao andar para não pisar nos rastros das vacas. Vi uma frase em uma grande pedra que dizia: “Love to be loved” (Ame para ser amado). Eu queria amar de novo, mas não estava conseguindo mais sentir amor. Precisava fazer isso. Abrir o coração. Amar para ser amada. Refleti. Segui. Um pouco adiante, vi uma linda e enorme teia de aranha cheia de pingos d’água compondo seu desenho. Pareciam pequenos cristais. Como algo tão fino e de aparência frágil pode ser tão forte? Ela estava entre dois arames farpados. Contraste. Fortaleza X delicadeza. Parecia uma poesia. A paisagem estava diferente de todos os outros dias. Meus sentidos estavam cada vez mais aguçados. Conseguia ver beleza até em um dia nublado e cinza. Isso me deixou feliz. Caminhei mais alguns quilômetros e passei por um vilarejo que parecia abandonado, mas as construções de pedra eram lindas. Havia uma árvore no meio das casas com um enorme tronco retorcido que parecia milenar. Eu fiquei por alguns segundo admirando e segui. Caminhei até “Triacastela”.  Foi meu destino este dia. Cheguei cedo. Eram 12:30. Andando pelo vilarejo, vi algumas macieiras lindas. As maças eram amarelas. Nunca tinha visto uma árvore dessas de perto. Procurei algum albergue aberto. Encontrei. Fiz check-in. Fui para o quarto. Ficava no alto. Tinha uma vista linda pela janela. Tirei um cochilo. Tava cansada. Acordei. Tomei um banho. Coloquei um roupa quentinha e procurei um lugar pra comer. Estava faminta. Já eram 17:00. Estava andando em direção a um restaurante, quando ouvi alguém falando meu nome: “Paola?” Eu virei. Era um brasileiro que uma amiga do caminho (Alex, Americana), havia me apresentado dois dias atrás através do Facebook. Ela me disse que havia conhecido ele e deu meu contato avisando que conheceu uma brasileira no caminho e quem sabe nos esbarrávamos por aqui. Trocamos duas ou três mensagens alguns dias antes e quando me viu, me reconheceu. Bom fisionomista. Não sei se eu conseguiria fazer o mesmo. Ele me reconheceu pela foto. Parei. Nos apresentamos. Sentamos juntos pra comer. Seu nome era Raphael, 27 anos. Nasceu em Recife. Mora no Rio. Sotaque carregado. Super simpático. Mais dois amigos sentaram com a gente (Borisz e Gabi). O almoço foi agradável. Conversamos bastante. Já não falava português fazia algum tempo. Foi bom me expressar na minha própria Língua. Comi a maior tortilha de todo o caminho. Quanto mais perto de Santiago, maior era a fatia da tortilha. Pedimos um queijo do Cebreiro com mel de sobremesa. Dividimos entre os quatro. Fiquei satisfeita. Deu 19:00. Procuramos um mercado para comprar algo antes que fechasse. Encontramos um ainda aberto. Comprei uma garrafa de vinho, cookies e pasta de dente. Me despedi do brasileiro. Ele estava em outro albergue. Combinamos de sair no mesmo horário no dia seguinte. Nos encontraríamos de manhã. Voltando pro meu albergue, encontrei Victor (Americano). Sentei por alguns minutos para bater papo. Ele comentou que estava pensando em viajar para alguns países depois do Caminho. Talvez fosse ao Brasil. Lhe dei meu contato caso fosse no Rio de Janeiro. Passou um homem levando um animal para abate. Ele estava agonizando. Meu coração ficou apertado. Eu não consigo ver um animal sofrendo. Meu olho encheu d’água. Entrei no albergue. Não conseguia ver aquela cena. Encontrei uma menina com traços orientais. Não sabia de que país era e nem que Língua falava. Sei que ela parecia agoniada pedindo informação para a hospitaleira que falava Espanhol. Pedi licença e perguntei em inglês se podia ajudá-la. Ela sorriu. Não sabia Espanhol, mas conseguia entender um pouco o Inglês. O problema é que ela também não sabia falar muito bem, então não conseguia explicar o que queria. Tinha um mapa na mão. Apontei dizendo onde estávamos e perguntei para que direção ela queria ir. Depois de muita mímica, tentativa, erros e acertos, entendi o que ela queria. Me senti brincando de “Imagem e Ação”. Ela queria saber para qual lado ficava a estrada, pois no dia seguinte, pretendia pegar carona, ônibus ou um taxi até seu destino seguinte. Não queria caminhar, pois havia se machucado. Não foi fácil, mas com boa vontade, todo mundo consegue se ajudar por aqui. Ela juntou as duas palmas da mão, aproximou do peito e me agradeceu abaixando a cabeça como fazem alguns orientais. Fiquei feliz. Sorri. Desejei “Buen Camino” e fui para o quarto. Tomei 2 taças de vinho. Relaxei. Comi cookie. Deitei. Agradeci. Dormi.

Lição do Dia: A beleza está nos olhos de quem vê e não no que está sendo observado. É possível enxergar beleza até em um dia cinza e nublado se olharmos com os olhos da alma e com amor no coração. Tudo depende do seu estado de espírito e dos seus sentidos aguçados.

Quer ver a galeria de fotos desse dia? Clique aqui e caminhe comigo…

4 thoughts on “Dia#24 | Caminho Francês

    1. Sonia, com certeza o Caminho é um caminhar profundo para dentro de si. Nunca mais somos os mesmos após fazê-lo! Buen Camino! =)

    1. Claro que vai conseguir, Jeane! A caminhada mais longa começa com o primeiro passo e isso acontece quando você decide fazer o Caminho! Boa sorte e continue caminhando comigo.. Buen Camino!!! =)

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *