Dia#20 | Caminho Francês

Dia#20
Distância: 25,4km
Tempo de caminhada: 8 horas
Clima: Sol
Temperatura: Mín: 10° / Máx: 24°
Saída: Santa Catalina de Somoza
Chegada: El Acebo
Data: 26/09/2017
Palavra do Dia: Desapego

Acordei. Me arrumei. Comi uma barrinha de cereal que tinha na mochila. Comecei a caminhar. Ainda estava escuro. Usei uma lanterna pra iluminar o caminho. Avistei uma pedra que me chamou atenção. A luz refletiu algo escrito em amarelo. Me aproximei. A pedra estava encostada em uma cruz e dizia: “Love. Peace. Harmony.” Peguei a pedra. Segurei firme. Guardei os sentimentos. Devolvi a pedra. Carregar coisas, pesam. Levar bons sentimentos é leve. Estava na hora de desapegar de tudo. Levar apenas o essencial. Segui. Veio o nascer do sol. O céu ficou alaranjado. Após alguns quilômetros cheguei em um pequeno vilarejo. Tinha um único lugar aberto. Entrei. O dono era um senhor simpático. Lugar simples e  charmoso. Aconchegante. Como quase tudo por aqui. Me senti em uma casa na serra. As escadas de madeira tinham sido construídas por ele. Uma balança antiga e colorida me chamou atenção. Tirei foto. Comprei uma banana, um iogurte e um pin do caminho pra guardar de recordação. Sentei em uma mesinha e comi. Não tinha mais ninguém. Só eu e um amigo. Depois de satisfeita, segui viagem. Vi um gatinho deitado em um cesto em uma janela. Coisa mais linda. Me deu saudade dos meus. Estava clareando. O dia começava a ficar dourado. Mais a frente, vi alguns montinhos de pedra em cima de uma outra grande pedra. Estava escrito: “To be trully able to share your love with others, you got to have enought for yourself in the first place” (Para ser verdadeiramente capaz de compartilhar seu amor com os outros, você tem que ter o suficiente para si mesmo em primeiro lugar). Profundo. Amei. Momento para reflexão. Decidi fazer um montinho de pedras alí também. Foi minha forma de expressar que acreditava nesse pensamento. Peguei 6 pequenas pedras do chão. Usei 4. Devolvi 2 para a natureza. Estou aprendendo a desapegar. Continuei meu caminho. Parei para comer alguns metros adiante. Comi algo que ainda tinha na mochila. Entrei em uma trilha no meio da natureza. Alguns metros depois fui beber água e engasguei. Perdi o ar. Não conseguia respirar. Parei. Me acalmei. Retomei o ar e finalmente consegui respirar fundo. Melhorei. Bebi mais um gole de água. Ficou tudo bem. Resolvi fazer uma cruz com galhos que encontrei no chão e pendurei em uma cerca. Foi simbólico. Aprendi com meu amigo Alex do Caminho que cruzes significam deixar algo para trás. Senti que naquele momento que engasguei algo que não estava “descendo”, foi colocado pra fora. Às vezes, é difícil aceitar algumas coisas na vida. Parece que fica preso na garganta. É preciso engolir ou colocar pra fora para poder respirar novamente. Se libertar. Viver de novo. Fiz isso. Segui em frente. Alguns passos adiante, passei por uma micro ponte. Senti calor. Tirei a luva, a gola e os dois casacos. Continuei. Cheguei em um gracioso vilarejo. Parei em um bar para ir ao banheiro. Lugar charmoso. Comi uma barra de cereal que tinha na mochila e um croissant de chocolate. Continuei caminhando. Vi um cachorro dormindo sossegado em frente a uma pequena casa de pedra. Me trouxe paz. Passei por uma rua onde tudo era muito colorido. Tendas para comprar comida. Vasos de flores. Local para acampar. Senti alegria. Vi um gato cinza lindo camuflado no meio de um canteiro de madeira. Tirei foto. Me deu saudade dos meus que estão em casa. Por alguns metros, andei sobre flores rosas caídas no chão. Parecia que a natureza tinha jogado flores para eu passar. Sorri. Me senti especial. Alguns quilômetros adiante, pude ver claramente o outono chegando. O verde começou a dar espaço pro amarelo chegar. A paisagem começou a ficar alaranjada. Bonito ver essa transformação. Assim como a natureza muda, nós também mudamos ao longo do caminho. Não somos mais os mesmos depois de tantos quilômetros percorridos. Mais a frente, vi muitas árvores secas. Pareciam tristes. O sol do verão castigou a vegetação. Provavelmente o fogo destruiu uma parte deixando um enorme vazio. Às vezes, a vida é mesmo devastadora. Mas sempre tem aquele árvore linda lá no meio que sobrevive à tudo. Eu quero ser essa árvore. Aquele que tem fé, permanece em pé em qualquer situação. Segui meu caminho. Alguns quilômetros adiante, vi alguns bois pastando. Eles estavam soltos e bem próximos da trilha. Me aproximei devagar. Queria tentar fazendo carinho. Um deles me olhou de repente. Fiquei com receio. Parecia bravo. Resolvi parar e continuar minha caminhada. Cheguei em outro vilarejo. Parei pra comer. Pedi uma tosta com pasta de tomate e azeite. Mudei o cardápio. Queria variar o paladar hoje. Novos sabores. Os sentidos estão ficando cada vez mais aguçados. Comi um croissant de chocolate de sobremesa. Aliás, comi dois. Segui viagem. Um minuto depois, um amigo (Borisz) falou “yes” e deu um pulo do meu lado. Perguntei o motivo. Ele disse que estava muito feliz porque percebeu que estava mais aberto. Conversando com mais pessoas. Ele chegou aqui bem fechado. Fiquei MUITO feliz ao vê-lo feliz. Lhe dei um abraço. Ele sorriu como uma criança. Disse que não se sentia assim há muito tempo. Momento de gratidão. Continuei caminhando e 2km depois, avistei a famosa Cruz de Ferro lá no fundo. Bem de longe. Um dos lugares mais esperados do Caminho. Um dos motivos pelo qual eu vim. As pessoas costumam trazer uma pedra ou um objeto qualquer de seu país para simbolizar algo que queira deixar para trás. Um hábito. Uma tristeza. Um amor. Uma mágoa. Uma dor. Trouxe minha pedra. Carreguei-a na minha mochila todo esse tempo. Pequena. Branca. Bonita. Quando avistei a cruz de longe, começou a tocar “let it go” no meu ipod. Não acreditei. Mais uma vez, tocou a música certa na hora certa. Me emocionei. Comecei a chorar. Lágrimas escorriam dos meus olhos. A cada passo que eu dava, eu sentia que estava mais perto do maior desapego da minha vida. Eu sabia que não seria fácil. Era chegada a hora de deixar um grande amor para trás. Desapego emocional. Como isso é difícil pra mim. Peguei a pedra com a palma da mão. Segurei forte. Fui caminhando. Olhando focadamente para o alto da cruz enquanto ouvia a música. Passou um filme pela minha cabeça do que era tão difícil deixar para trás. Quando cheguei ao pé do monte da cruz, coloquei minha mochila no chão. Sentei. Peguei um pequeno caderno. Arranquei uma folha. Escrevi uma carta de despedida e embrulhei a pedra nessas palavras. Andei até o topo do pequeno monte. Cheguei ao pé da cruz. Olhei para o alto e chorei. Eu queria e não queria (ao mesmo tempo) me desapegar desse amor. Mas eu precisava desse desapego emocional para seguir em frente. Respirei fundo. Dei mais um pequeno passo. Estiquei o braço e coloquei a pedra em um pequeno buraco dentro da cruz. No único espaço que cabia. Ele estava alí pra mim. Chorei mais. Chorei muito. Pedi força para continuar. Era difícil sair dalí. Olhei para o alto mais uma vez e agradeci. Dei mais um passo e a pedra ficou para trás. Pedi para um amigo registrar esse momento. Foi uma vitória pra mim. Desci o monte. Não olhei para trás. Nesse momento tão carregado de emoção. Me lembrei de um pedido que meu amigo Espanhol havia feito pra mim. Pediu que eu pegasse um pedra qualquer e jogasse de costas para trás na Cruz de Ferro já que ele não passaria por alí. Encontrei uma pequena pedra quase translúcida. Bonita e transparente como ele. Brilhava como seu olhar. Peguei-a com carinho, pensei nele e joguei para trás. O que ele tivesse para deixar alí, simbolicamente, deixei pra ele. Segui leve caminhando. Aliviada. Leve. Feliz. Emocionada. Livre. De repente, olhei para o celular e me dei conta de que fiz isso em uma data que havia um grande significado pra mim. Foi simbólico. 26 de Setembro. Data em que havia começado o namoro com esse amor que acabei de deixar para trás. Quase não acreditei. Não era possível. Mais uma vez. Nada é por acaso. Fiquei impressionada. Realmente foi na hora certa. Não podia ser em uma data melhor. Agradeci. Segui cantando. Saltitante. Cheia de energia. As músicas no ipod me animavam ainda mais. A caminhada foi longa hoje. Muito sol. Alguns quilômetros adiante, avistei outro local famoso do Caminho chamado “Manjarin”. Dizem que o último dos templários vive alí. É um lugar bem colorido. Cheio de placas com nomes de países e cidades e suas distâncias até lá. Achei uma bem no meio, grande e nas cores verde e amarelo que dizia: “Caminho do Sol – Brazil”. Era a minha origem. Tirei uma foto pra guardar de recordação. Entrei para procurar um banheiro. Ficava do lado de trás. Era uma porta de madeira com um buraco no chão. Achei estranho. Mas era o que tinha. A única opção. O peregrino aprende a agradecer por tudo. Era tudo muito simples. Não cheirava muito bem e também não era muito limpo. Mas percebi que existia carinho. Agradeci o dono do local. Enchi minha garrafa d’água. Sentei por alguns minutos para descansar. Um pequeno gatinho malhado com cara de sono se aproximou de mim. Fiz carinho e ele retribuiu com chamego. O Cachorro ao lado me olhou de rabo de olho. Não me deu muita bola. Segui meu caminho. Vi um besouro com um casco reluzente. Ele era verde e brilhava como metal. Me chamou atenção. Depois de mais alguns quilômetros, próximo ao destino do dia, veio uma grande descida. Era um penhasco. Parei bem na pontinha. Abri os braços e gritei. Gritei MUITO alto: “Ahhhhhhhhhhhhhh…”!!! Até acabar o ar. Que sensação boa. Liberdade. Leveza. Vitória. Segui em frente. Deu pra ver o pequeno vilarejo lá do alto. Era lindo. Pequenas casas de pedra com telhado azul. Igual a que eu sonhava ter quando menina. Cheguei no vilarejo. Super charmoso. Energia gostosa. Achei um albergue. Fiz check-in. Peguei minha cama. Tomei banho. Lavei toda minha roupa. Coloquei no sol. Estava faminta. Saí pra comer. Encontrei um bar com a maior tortilha do caminho. Pedi uma. O pão também estava delicioso. Macio. Aqui o pão costuma ser mais duro. Fiquei satisfeita. Matou minha fome. Um amigo queria comer em outro local. O acompanhei. Demos uma volta pelo vilarejo depois. Bateu sono. Fui pro albergue. Tirei um cochilo. Pequena “siesta”. Acordei. Meus amigos italianos estavam jantando. Me chamaram pra tomar um vinho. Sentei com eles na varanda do albergue. Colocamos músicas no youtube. Brindamos. Conversamos. Cantamos. Dançamos. Rimos. Choramos. Ficou tarde. Bateu sono. Fomos pro quarto. Deitei. Rezei. Agradeci. Dormi.

Lição do Dia: Um dos momentos mais felizes é quando temos a coragem de deixar pra trás o que não podemos mudar. Nós somos capazes de superar todas as coisas. Precisamos apenas de tempo para compreender, inteligência para buscar o caminho e coragem para seguir em frente.

Quer continuar acompanhando minha jornada? Cadastre-se aqui e caminhe comigo!