Dia#19 | Caminho Francês
Dia#19
Distância: 25,4km
Tempo de caminhada: 8 horas
Clima: Sol
Temperatura: Mín: 10° / Máx: 24°
Saída: Hospital de Órbigo
Chegada: Santa Catalina de Somoza
Data: 25/09/2017
Palavra do Dia: Persistência
Tive uma boa noite de sono. Confortável. Quarto silencioso. Acordei às 6:00 AM. Me arrumei. Fui pra porta do albergue. Esperei por meia hora por alguns amigos para começar a caminhada. Era o combinado. Rolou um desencontro. Segui apenas com um deles. Ainda estava bem escuro. Precisei de lanterna nos primeiros quilômetros. Amanheceu. Lindo nascer do sol como sempre. Estava em uma pequena subida quando olhei para trás e avistei meus amigos italianos se aproximando. Acenei. Parei e esperei por alguns minutos até eles me alcançarem. Haviam ido para a direção errada. Nos abraçamos. Seguimos juntos. Era um lindo dia de sol. A luz tinha uma cor dourada como nenhum outro dia do Caminho. Dia literalmente iluminado. O sol fazia tudo reluzir como ouro. Atravessamos uma área rural. Vi muito feno, vacas e bezerros. Eles eram lindos. Mas estavam trancados em pequenos currais. Um metro quadrado para cada um. Mal podiam se mexer. Um dos bezerros me olhou profundamente nos olhos. Parei pra fazer carinho. Ele deixou. Olhar triste. Fiquei com dó. Animais não nasceram pra ficar presos. Lembrei que devem estar alí porque serão alimento humano depois. Meu coração ficou apertado. É uma vida que tem alí. Um animal tão puro e indefeso. Nessa hora fiquei feliz por não comer carne. Me despedi do pequeno bezerro e segui meu caminho. O azul do céu estava tão forte que chegava a ofuscar os olhos. Muitas “cruzes” de rastros de avião no ar. Lembrei do meu amigo Alex. Pensei em mais algumas coisas que queria deixar para trás. Desapegos emocionais. Após alguns quilômetros, avistei um verdadeiro oásis. “La casa de Los Dioses”. Tudo colorido e muito simples. Parecia um pequeno acampamento. Local para tendas e barracas. Redes de descanso. Balanço. Cangas para colorir a parede. Construção feita de tijolos pintados. Muitos corações desenhados com pedra no chão. Muito amor. Tinham muitos peregrinos fazendo uma parada alí. Comendo, descansando. Havia uma mesa farta com todo tipo de guloseima saborosa, orgânica e natural. Estava escrito: “A chave da essência é a presença.” Concordei. Eu estava vivendo isso todos os dias por aqui. Sorri. Tinha uma caixinha para “donation”. Contribuí. Comi duas fatias de pão integral caseiro. Um com manteiga de amendoim e outro com tarrine. Estava com saudade desses sabores. Me deleitei. Estava admirando as comidas, quando um homem de olhar manso se aproximou e falou: “Buenos dias! Brasileira?” Respondi que sim e dei um sorriso. Ele se apresentou e disse que passam muitos peregrinos todos os dias por alí. Quase sempre acerta de onde são somente olhando para eles. Observador. Seu nome é David. Mora aqui faz 7 anos. Homem simples. Olhar puro. Brilhante. Olha nos olhos. Voz calma. Fala com o coração. Dá pra sentir a vibração do amor no tom da sua voz. Sorriso largo. Bonito. Dá vontade de ficar olhando pra ele. Em seu pequeno paraíso não tem eletricidade. Não tem TV. Seu mundo é aquele pedaço de terra. Os habitantes são os peregrinos que passam. Seu noticiário são as histórias que as pessoas contam sobre suas vidas. Ouvi alguém perguntar pra ele se já passou algum político por aqui. Ele respondeu: “Não enxergo políticos. Vejo pessoas. Pra mim, somos todos seres humanos. Somos todos iguais. Amo todas as pessoas que passam por aqui.” Lindo isso. Me emocionei. Sem rótulos. Sem preconceitos. Sem julgamentos. Resolvi carimbar minha credencial do peregrino nesse lugar incrível. Carimbei uma vez. Saiu fraco. Falhado. Pela metade. Acho que tinha pouca tinta. David veio até mim e caprichou. Carimbou forte ao lado de onde tinha ficado falhado. Pressionou por alguns segundos. Pronto! Lá estava a marca desse lugar inesquecível. Era um coração. Um ao lado do outro. Um falhado e um perfeito. Essa imagem foi metafórica pra mim. Uma mensagem. Nunca desistir do amor. Tentar sempre mais uma vez. Me emocionei. Pedi pra tirar uma foto com ele. Dei um abraço. Longo. Pude sentir sua leve energia. Coração puro. Amor incondicional. Agradeci. Segui. Mais a frente, encontrei um senhor tocando violão. Sozinho. No meio do nada. Me perguntou meu nome e da onde eu era. Tocou uma canção na hora pra mim. Colocou meu nome na música. Vive com doações dos peregrinos. Dei algumas moedas. Segui. Cheguei em Astorga. Cidade grande. O dia estava bonito. Encontrei meus amigos italianos no meio da praça. Eles haviam chegado antes de mim. Já haviam comido e estavam partindo. Procurei uma farmácia para comprar vaselina. A minha minha acabado e meus pés não podiam ficar sem ela. Comprei. Dei mais uma volta. Parei pra bater papo com mais dois peregrinos. Enchi minha garrafa de água em uma fonte no meio da praça. Tinham alguns pombos disputando o espaço comigo. Esperei eles irem embora e enchi. Encontrei uma loja que tinha um mochilão tamanho real. Parei pra uma foto e segui. A Catedral de Astorga é linda por fora. Imponente. Cidade bonita. Passei por uma igreja com uma arquitetura completante diferente. Telhado baixo. Azulejos por fora. Pinturas e mosaicos. Procurei um lugar pra comer. Parei em um bar. Pedi uma tortilha. Fiquei satisfeita. O sol estava bem forte. Meu pé estava doendo. Mas eu ainda pretendia caminhar mais 5km até o vilarejo seguinte. Segui. Devagar e sempre. Um pouco depois avistei uma pequena capela com uma fonte. Parei para abastecer minha garrafa d’água. Tinha uma pedra com a mesma frase gravada em diversas Línguas: “A fé, fonte da saúde”. Podemos perder quase tudo nessa vida, mas se ainda assim tivermos fé, teremos TUDO. Alguns quilômetros adiante, senti meu pé doer. Parei um pouco pra descansar. Vi uma placa dizendo que estava à 245km de Santiago. Faltava pouco. Me deu ânimo. Levantei e continuei. Depois de passar por mais alguns vilarejos, finalmente cheguei em Santa Catalina de Somoza. Encontrei um simpático e colorido albergue. Me senti bem-vinda. Hospitaleiro simpático. Fiz check-in. Tirei meus sapatos. Senti alívio. Sensação maravilhosa depois de uma longa caminhada. Peguei minha cama. Tomei um banho. Lavei minha roupa. Coloquei pra secar. Peguei tudo que tinha pra comer na mochila. Sentei no sol na calçada pra comer com alguns amigos. Ficamos de papo algum tempo. Depois decidi dar uma volta pelo vilarejo. Lugar charmoso. Uma graça. As pequenas casas eram todas de pedra. Me senti em um filme medieval. Me encostei no muro de uma delas e fiquei alí admirando a paisagem e o horizonte por quase uma hora me esquentando no sol. Que tarde agradável. Levantei para dar uma última volta. Vi uma porta de madeira no meio de um muro de pedras que parecia não dar para lugar nenhum. Achei curioso. Às vezes, não temos saída mesmo. Mais uma metáfora. Momento para reflexão. Voltei pro albergue. Hora do jantar. Mais conversa entre amigos. Sentei com Mattia, Martha, Sarah, Mayuresh e Borisz. Muita conversa. Brindei com água hoje. Não bebi vinho. Escureceu. Bateu fome de novo. Peguei croissant e queijo que ainda tinha no mochila. Fiz dois sanduíches. Comi. Bateu cansaço. Deitei. Agradeci. Dormi.
Lição do dia: Nunca desistir do amor! Não há nada mais bonito do que uma pessoa que teve seu coração partido, mas ainda assim acredita no amor.
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