Dia#14 | Caminho Francês
Dia#14
Distância: 24.6km
Tempo de caminhada: 6 horas
Clima: Sol
Temperatura: Mín: 7° / Máx: 21°
Saída: Boadilla del Camino
Chegada: Carrión de Los Condes
Data: 20/09/2017
Palavra do Dia: Acreditar
Acordei 5:30. Pensei na minha calça. Me arrumei e desci as escadas para a recepção com esperança. Fui rezando. Pensando positivo. Olhei para a mesa e lá estava ela. Dobradinha. Em cima do bilhete que eu havia deixado no dia anterior. Quase não acreditei. Pulei de alegria. Igual criança. Quanta felicidade! Era só o que precisava para continuar a caminhar. Não preciso de muito por aqui. Apenas o básico. É o que me completa e me faz feliz. SIMPLICIDADE. Aqui se aprende a dar valor à tudo. Às pequenas coisas. Somente o essencial. Coloquei minha calça. Minha alegria contagiou quem estava em volta. Tinha uma música brasileira tocando ao fundo. O dono adora. Português é uma língua querida por aqui. Comprei um chocolate. O primeiro até agora. “Snickers”. Meu preferido. Me lembra minha infância. Senti que precisaria. Sigo meus instintos aqui. Agradeci pela estadia. Comecei a caminhar com dois amigos. Borisz (Húngaro) e Alex (Americana). Ela era uma simpatia em pessoa. Energia leve. Agradável. Comunicativa. Aberta. Alegre. Ela me disse uma coisa que nunca vou esquecer. Falou que tenho “thirst for life” (sede de viver). Disse que sou cheia de vida e que pareço passional. Adorei. Interessante. Me conhece há apenas algumas horas e me definiu perfeitamente. Sou assim mesmo. Garota sensível. Me identifiquei com ela. Caminhamos os primeiros quilômetros ainda no escuro. Veio o nascer do sol. Lindo como sempre. Para apreciá-lo, é preciso parar e olhar pra trás. Andei por alguns metros de costas para apreciar esse espetáculo da natureza. Isso me faz refletir. Diminuir o ritmo e mudar a direção do olhar, nos permite enxergar o que antes não era possível ver. Novo aprendizado. Eu e a americana conversamos sobre o amor. Sentimento tão lindo. Simples. Complexo. Puro. Inexplicável. Universal. Continuei caminhando. Estava bem frio. Coloquei todos os meus casacos, luvas, gorro e ainda me enrolei na manta como no dia anterior. Lancei meu “Ninja Style” como costumavam dizer meus amigos. Só os olhos de fora. Depois de 10km, paramos em um bar. Comi uma tortilha. Seguimos. No caminho, encontrei um peregrino com um chapéu todo colorido e uma hélice. Achei engraçado e curioso. Sorri. Perguntei se podia tirar uma foto com ele. Registrei o momento. O apelidei de “happy cap” (chapéu feliz). Caminhamos mais 10km. Avistei um albergue diferente. No meio do mato. No meio do nada. Entrei. Parecia uma mini fazenda. Muitos animais. Pato. Poney. Cachorro. Gatos. Tendas. Redes. Música “New Age” ao fundo. Fui até o balcão ver o que tinha para comer. Fui atendida por um homem super simples. Sorriso largo. Alegria de sobra. Energia contagiante! Me fez sorrir. Ainda mais. Pedi um café quente e mais uma tortilha. Sentei no sol. Me aqueci. Conversei com algumas pessoas que estavam sentadas alí. “Enya” tocando ao fundo. Adoro. Poderia passar o dia alí. Mas estava na hora de seguir. Um cachorro sentou do meu lado. Pediu carinho. Lembrei dos meus. Já falecidos. Bateu uma saudade gostosa. Ele tinha um olhar triste e cansado. Porém, de amigo. Fiz carinho. Me despedi. Parti. Caminhamos mais alguns quilômetros. Vi uma placa com o nome da minha mãe: “Casa Rural Aurea”. Tirei uma foto pra ela. Paramos em um bar para ir ao “toilet”. Um senhor se aproximou. Começou a conversar comigo. Tinha 81 anos. Tentamos nos entender. O Espanhol dele era carregado. Mas com boa vontade, todo mundo se entende por aqui. Me deu dicas de onde ficar no próximo vilarejo. Agradeci. Segui. Muita conversa até chegar no nosso destino final. Procurei o albergue que o senhor me indicou. Não gostei quando cheguei. Me pareceu frio. Sem vida. Decidi procurar outro lugar. Estava tudo cheio. Voltei. Toquei a campanhia. Uma simpática irmã me atendeu. Sorriu pra mim e me olhou profundamente nos olhos com enorme pureza. Me desarmou. Havia julgado o local sem nem conhecer. Sem perceber. Não se deve fazer isso. Lembrei de um aprendizado que já havia tido no Caminho. Tinha cama. Fiz check-in. Ela nos explicou as regras. O albergue era uma antiga escola católica. Cheguei no pátio. Me senti na hora do recreio. A quadra era grande. Me lembrei do Assunção. Escola onde completei o 2o grau. Veio algumas lembranças. Sorri. Subi as escadas. Cheguei no quarto “América”. Esse era o meu lugar. Era uma antiga sala. Grande. Espaçosa. Sem beliches. Cama individuais para todos. Escolhi a minha. Bateu fome. Fui no bar. Tava sol. Muito sol. Quente. Comi uma tortilha. Chegou um amigo. Pediu uma cerveja. Dei um gole. Gostei. Pela primeira vez. Talvez meu paladar esteja diferente aqui. Achei refrescante. Decidi pedir uma pra acompanhar. Brindamos. Tirei foto. Momento inédito. Precisava registrar! Minha amiga Caroline (Inglesa) me viu e sentou na mesa. Já não nos víamos fazia alguns dias. Conversamos e rimos muito. Estava escurecendo. Decidi ir no mercado abastecer a mochila. O dia seguinte seria longo. A caminhada seria de 17km sem lugar para parar. Precisava levar comida. Comprei croissant, palmier e chocolate. Era o suficiente. Não adianta exagerar, se não, a mochila fica muito pesada e não dá nem pra carregar. Muito menos pra continuar. Aqui aprendi a comprar somente o que preciso para o próximo dia. É preciso viver um dia de cada vez. Todo dia vira “somente hoje”. Isso é viver no presente. Voltei pro albergue. Um amigo comprou uma tortilha no mercado e ofereceu de dividí-la comigo. Aceitei. Agradeci. Ele apenas aqueceu no microondas e pronto. Comemos. Fiquei mais do que satisfeita. Saí para dar uma volta. Comprei vaselina para passar no pé antes de vestir a meia e evitar bolhas. A minha havia acabado. Caminhei mais um pouco e reencontrei um amigo. O Victor (Americano) me falou que encontrou o Jonas (Alemão) no vilarejo anterior e ele havia machucado o joelho. Disse que não dava mais continuar e decidiu voltar para casa. Comprou a passagem para o dia seguinte. Fiquei triste. Ele me acompanhou no dia mais difícil da minha caminhada até agora (no segundo dia quando tive que andar 41km). Talvez, eu nem teria conseguido sozinha. Lhe mandei uma mensagem agradecendo pela amizade, por todos os momentos que passamos juntos e desejei boa viagem. O Caminho tem dessas coisas. Por algum motivo, ainda não era a hora dele. Ele me disse que voltaria no ano seguinte. Andando pelo vilarejo, encontrei a americana Alex e sentamos em um bar. Ela pediu uma garrafa de vinho. Eu só quis beber um gole para brindar. Chegou mais gente. Agora éramos quatro. O papo estava bom. Outro peregrino se aproximou. Seu nome era Alex Ele era do Norte da Noruega. Já esteve 10 vezes no caminho. Quanto aprendizado. Quanta sabedoria. Costumo falar muito. Dessa vez, silenciei. Muitos conselhos. Ouvi atenta. Me fez pensar. Refletir. Falou sobre energia. Átomo. Molécula. Cosmos. Natureza. Universo. Conexão. Deus. Me disse algo que jamais esqueci. Falou para eu não olhar somente para o chão e para frente enquanto caminho. Me aconselhou a olhar também para o céu e procurar por cruzes no ar. Aquelas que se formam com os rastros de aviões que cruzam o céu. Disse para cada vez que eu ver uma cruz no céu, pensar em algo do meu passado que eu queira deixar para trás e esquecer; pois não há nada mais que se possa fazer. “It’s done!” Chorei. Essas palavras foram como uma flecha no meu peito. Vim aqui para trabalhar o desapego emocional. Era hora de começar. Agradeci o sábio conselho. Lhe dei um forte abraço. Me despedi. Fui pro albergue. Estava escovando os dentes quando a Alex entrou no banheiro. Disse que queria me dar algo que ela trouxe para deixar em algum lugar do caminho. Era um pequeno amuleto simbólico que a ajudou a superar um antigo amor. Por algum motivo, sentiu que deveria me dar. Caíram lágrimas dos meus olhos. Tudo me emociona por aqui. Nos abraçamos forte. Agradeci. Ela disse que eu era especial. Seu aniversário seria no dia seguinte, mas quem ganhou um presente fui eu. Nunca vou esquecer seu gesto. Fui pro quarto. Guardei o amuleto com carinho na mochila. Deitei. Refleti. Agradeci. Escrevi. Dormi.
Aprendizado do Dia: Nunca deixar de acreditar e deixar para trás o que já não nos pertence mais.
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